As cenas desta reportagem foram todas feitas em uma noite de sexta-feira, na Nefertitti
Bem sabemos muitos de nós que vocação e ofício constituem uma relação que nem sempre chega aos finalmentes. A vantagem é que esse coito interrompido não impede o sujeito de gozar o sucesso profissional. Exemplo disso vem de uma trinca de sócios improváveis – um ex-líder religioso mórmon entusiasta do então revolucionário conceito dos hipermercados; a filha jovem, bonita e bem-criada de um professor da USP; e seu tio torto, proprietário de linhas telefônicas vitimado pela privatização. São donos de um negócio igualmente improvável: uma bem-sucedida casa de swing para quem não faz exatamente swing, localizada na Rua Augusta, em São Paulo, e chamada Nefertitti. Com o “t” dobrado porque a numeróloga do tio torto mandou e o religioso mórmon preferiu não objetar.
Diante do esforço que os três fazem para que não se chame a Nefertitti de casa de swing, é até uma sacanagem chama-la assim. E, embora em seu interior role uma trepantina danada, trata-se de fato de uma balada excêntrica muito mais do que um espaço para o escambo de maridos e esposas. Em sua singularidade kitsch e depravada, a Nefertitti é como se fosse o famoso Love Story paulistano de uma década atrás, quando playboys e prostitutas – já despidas de suas pessoas jurídicas – celebravam a libido, a putaria e o uísque paraguaio na “casa de todas as casas”. Com a diferença de que na Nefertitti não há prostitutas – a não ser aquelas apenas vocacionadas para a mesozoica profissão. A despeito disso, o que se desbunda lá dentro é uma enormidade. Despeito, desbunda, despênis e desvagina.
A moderna pista de dança da Nefertitti nada deve às melhores da cidade. Pelo contrário: os dois grandes bares que ladeiam a pista têm balcões suficientemente largos para que neles se pratique um pole dance versão nóis lá em casa, e que talvez devesse ser executado de capacete. As clientes podem ali mostrar suas poupanças e aplicações de silicone. O sujeito no balcão está autorizado a passar a mão em tais ativos (e até nos passivos), desde que respeitosamente, sem assaltar o cofrinho.
Por volta de 1h da manhã, um competente e divertidíssimo show erótico terminará em striptease. Para o freguês que já alcançou o terceiro drinque, também. Porque, se ele estiver acompanhado, penetrará então no labirinto onde o sexo é liberado, a partir de uma porta lateral onde todo mundo entra assim que o show se encerra. É providencial a camisinha na carteira e a amnésia alcoólica no dia seguinte. A iluminação a meia-bomba emagrece os gordos e enrijece as flácidas – um milagre.
Swing: uma casa de família
A Nefertitti é algo que saiu da cabeça – não se sabe ao certo se da de cima ou da debaixo – do carioca Paulo Machado, de 51 anos, o religioso mórmon. Nunca lhe ocorrera abrir uma casa de swing. O que lhe provocava a ereção empreendedora era “aquela coisa do hipermercado, em que cada metro quadrado de loja precisa ser vendável”. Há dez anos, o Paulo assistiu em Paris ao show erótico do cabaré Crazy Horse. Estava com a mulher, Luciana Godoi, a filha bonita do professor da USP que hoje é sua sócia e também sua ex. Degustava um vinho na Champs Élysées quando veio aquele clique: “Não existe no Brasil nada como esse Crazy Horse”.
Administrador de empresas com passagens pelo Carrefour e pela rede grega Candia, tão crente nas virtudes do hipermercado como no Livro de Mórmon, perguntou-se: “E se eu trouxer para um único espaço várias atrações que permitam à pessoa fazer tudo o que deseja ali dentro?”. Lembrando que no hipermercado havia “pneu, farmácia, geladeira, ração de cachorro”, bolou seu negócio na mesma linha. A prioridade era o “show sensual” – mas também ia ter jantar, happy hour e o c… a quatro. Sim, o c… a quatro, porque depois do show, calculou o Paulo, “o cara quer pegar um motelzinho”. Prevendo uma frequência maior de pessoas casadas, conjecturou: “Há quanto tempo esse sujeito não faz uma brincadeira divertida? O casamento acaba com isso, é só papai-e-mamãe, no máximo uma lingerie nova”. Pensou então num lounge onde as pessoas “pudessem fazer uma preliminar, resgatar essa questão do beijo, cê tá me entendendo?”. Sei, sei…
Lembrou-se de um outro Love Story, que funcionava na Rua Maracatins, em Moema, nos anos 1970. Lá se podia fechar a mesa com uma cortininha e ficar à vontade. Cogitava alguma coisa do tipo quando um amigo sugeriu que fossem, ele e a Luciana, a uma casa de swing. “Casa de swing??? Como é que é, meu amigo? Troca de casais??? Tá pensando que eu quero um negócio desse pra minha vida? Eu e a minha mulher???”. O Paulo nunca tinha ouvido falar em casa de swing. “Eu juro.”
Swing: uma casa de família
A Luciana, bem, a Luciana não jura nada. Mas faz sentido que o Paulo não conhecesse as casas de swing, porque se trata afinal de um religioso que chegou a líder da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a casa de todos os mórmons. Mórmons não bebem café, assim como não fazem sexo antes do casamento. Aos 21 anos, Paulo casou virgem com uma moça da igreja, com quem teve duas filhas (hoje é avô de um casal). Antes, entre os 18 e os 20, interrompeu os estudos para empreender uma missão de catequese no Nordeste. Todo mórmon passa por tal missão, executada em dupla com outro companheiro de fé. Com os hormônios saindo pela orelha, manteve-se casto até a volta, quando então se casou.
Swing: uma casa de família
Mórmons são menos radicais do que se imagina, defende Paulo. Ao contrário de algumas religiões neopentecostais, não demonizam a televisão, incentivam o teatro e o cinema. Seus grupos de jovens promovem torneios esportivos e festas animadas, nas quais o Paulo atuava como DJ. Com relação ao sexo, a igreja não fica fornicando o casal com questões por demais particulares. “E não tem isso de que o mórmon só transa no escuro”, esclarece. Fundamentalmente é o seguinte: “Ensinamos os princípios. Agora, querido, boa sorte”.
Fato é que a trepantina não alcançava o prefácio do Kama Sutra durante o primeiro casamento do Paulo. Separado depois de 14 anos, a sorte veio bater à sua porta sete meses mais tarde, quando uma amiga pediu que fizesse a gentileza de buscar no Aeroporto de Guarulhos a sobrinha de 24 anos que acabara de desembarcar. “Com espírito cristão”, o Paulo foi fazer o carreto. Então chegou a Luciana, “saradinha”, ela diz, “bundinha, peitinho, tudo certinho”. Tinha um estilo “hippie chique”, com a calça de cintura baixa e a barriguinha, “zero de barriga”, displicentemente à mostra. O Paulo viu aquilo e disse: “Pôôô…”.
Aos 39 anos, Luciana Godoi ainda é a filha bonita do professor da USP, agora aposentado. É uma mulher de estatura mediana, o cabelo liso e castanho, a pele muito branca. Passa com louvor pelo conceito segundo o qual a beleza advém de metades de rosto as mais semelhantes possíveis. Entre os 24 e 39 anos, teve um filho e engordou 6 quilos, uma bênção para quem tinha complexo de magra. Tudo isso, agregado que está naturalmente à temática do sexo, faz da Luciana uma pessoa interessante e desejável. Luciana é de Piracicaba, interior de São Paulo. Começou a trabalhar aos 15 anos. Escolada nos livros de “saiba como”, aprendeu com eles desde estampar camisetas até como nascem os bebês. Com relação a este último ensinamento, pôde finalmente colocá-lo em prática aos 16. “Gozei junto com ele. Difícil acontecer isso na primeira transa… Hoje entendo melhor o que se passou: tenho uma facilidade incrível pra isso, sabe?” Sei, sei… “Vai rapidinho, é um absurdo. Se doeu? Uma dorzinha gostosa… Durou uns 20 minutos”, cronometra, reafirmando em seguida seu gosto pelo esporte. “Daí pra frente não parei mais.”
Luciana fala de sexo de uma forma que seria constrangedora, não fosse sincera e divertida. É capaz de citar suas posições preferidas mencionando a retaguarda com a mesma naturalidade com que cita a vanguarda – e nem assim soar deselegante. Certa vez, nem bem tinha completado 20 anos, apresentou ao pai, rígido e circunspecto, uma conta: “Eu tenho emprego e cartão de crédito, mas dá só uma olhada aqui na quantidade de dinheiro que eu gasto com motel. Veja que absurdo! Será que você não poderia ser o meu fiador numa quitinetezinha que eu estou pensando em alugar com o Fernando?”. A quitinete rolou, e o Fernando, podendo treinar bastante, “até hoje ganha de todos disparado”.
Já formada em publicidade, com especialização em artes gráficas pela PUC-RJ e vocação para fotógrafa, Luciana pretendia morar em São Paulo quando desembarcou na cidade e o Paulo foi pegá-la no aeroporto. Ela se sentiu observada pelo espelho retrovisor. Depois, a convite dele, saíram outras vezes. Na terceira, beijou Paulo dentro do carro na hora de se despedir. Ela tinha 24, e ele, 35. Engataram então uma história que duraria 12 anos.
A Luciana não gostava muito do estilo do Paulo. Com o passar do tempo, foi dando aquela remodelada: “Pô, mas essas calças semibags não dão mais, tenta uma mais retinha”. Ele foi experimentando e tomando gosto. “Os sapatos, consegui que trocasse por uns All Stars.” Alcançados esses objetivos macros, partiu então para intervenções mais cirúrgicas. Corrigiu a miopia, fazendo-o abandonar os óculos. Depois mandou uma plástica no nariz. O que não são as mulheres quando resolvem dar um tapa na gente, né não?
Sexualmente, Luciana considerava Paulo “meio basiquinho, papai-e-mamãe”. Por ela tudo bem, mas foi logo avisando que, “por uma questão de útero invertido”, teria de ser o inverso: “Olha, o meu normalzinho é de quatro e, para cavalgar, só se eu estiver de costas”. Vendo o mundo dessa perspectiva, ela diz, o Paulo começou a gostar da brincadeira. A Luciana foi em frente – de frente, de costas, de cabeça para baixo, pendurada. Passaram a ver uns filmes pornôs. Na recém-demolida Kilt, boate colada ao Cultura Artística e que na época pegava mais fogo do que o teatro, assistiram juntos a uma perfomance de sexo.
Uma noite foram parar no Marrakesh, a mais antiga das casas de swing do bairro de Moema. Estavam por ali esperando o início do show de striptease, que julgavam ser a única atração, quando o Paulo foi ao banheiro. Voltou escandalizado: “Lu, você não sabe o que tem depois daquela portinha”. Foram lá conferir. “Eu não acreditei naquilo”, conta Luciana. “Aquele pessoal todo lá, um casal transando, o outro olhando, um cara passando a mão na mulher do outro.” Não ficaram excitados mas “extasiados”. A Luciana achou “engraçadíssimo”.
Depois dessa experiência, passaram a frequentar o Inner, uma outra casa de swing em Moema. Divertiam-se, enquanto o Paulo já “fazia laboratório” para o seu Carrefour particular. A essa altura, segundo a Luciana, estavam certos de que “a balada sensual, com essa pegada dos shows e do swing, tem um aspecto viciante – quem vai uma vez volta, e quem nunca foi tem curiosidade de ir”. O conceito deveria ser esse, mas o nível, superior. Também não deveriam chamar o empreendimento de “casa de swing”, sob pena de limitar o público aos praticantes da modalidade. Acabaram por cunhar um slogan: “Uma balada liberal, onde tudo é permitido e nada é obrigatório”. No Inner, começaram a fazer as contas da Nefertitti. Faturamento, receita, gastos com a instalação – chegaram enfim a um número: precisavam de R$ 100 mil.
A Luciana tinha um tio torto, Gabriel Gonzalez Fuentez, que necessitava se endireitar. Ganhara muito dinheiro comprando, vendendo e alugando linhas telefônicas. Mas as privatizações do governo FHC tinham acabado com esse mercado, onde “cada US$ 1 mil que você colocava viravam US$ 6 mil em dois anos”. Filho de refugiados da Guerra Civil Espanhola, seus pais chegaram pobres a São Paulo na década de 1950. Gabriel, que hoje tem 53 anos, começou a trabalhar aos 10. Adulto, vendeu carros e cabines reformadas de caminhões. Mas fez dinheiro mesmo “no ramo das telecomunicações”. Estava procurando “oportunidades de negócios” quando a Luciana telefonou convidando ele e a mulher, Ivete, para conhecer o Inner.
A impressão que teve sobre o público da casa é a mesma que tem até hoje a respeito das pessoas que se aventuram no labirinto da Nefertitti: “Uns desajustados… Ou o que posso dizer mais sobre quem traz a namorada para transar na frente dos outros, e fica com a bunda à mostra para todo o resto?”. Fala da experiência do Inner com a expressão de quem viu algo de fato lamentável: “É um negócio que choca, né?… Você ver essas surubas, essas orgias… É meio esquisito, vai… A Ivete nem dormiu aquela noite”. Duas semanas depois, o Gabriel entrou no negócio, liberando “o dinheiro da aposentadoria”.
A pretexto de “montar um bufê”, saíram à caça do imóvel ideal. Alugaram um em Moema, que foi inteiramente reformado pelos parentes da empregada da Luciana. Foram eles que construíram o labirinto, incluindo pequenos orifícios que aparecem em algumas paredes, “para que as pessoas enfiem as mãos” – bondade do Paulo, porque pela altura e circunferência é outra coisa o que se põe ali. Depois que a Nefertitti começou a funcionar, a Luciana trouxe os parentes do interior para conhecer seu novo investimento – veio a mãe, o pai, a irmã, o irmão, uma avó. Ninguém foi ao labirinto.
Swing: uma casa de família
A Nefertitti tem 10 anos. Passou por três endereços – Moema, Brooklin e Rua Augusta. No endereço de Moema ainda funciona o Casablanca, de propriedade dos três sócios e assumidamente uma casa de swing. A Luciana considera que as incursões do Paulo ao labirinto e a sua disposição em transformar a fantasia em realidade acabaram com o seu casamento. Hoje ela vive de novo em sua cidade natal, com o Fernando – aquele que “ganha de todos disparado”. Voltou a se relacionar com a fotografia: dá workshops de “nu artístico” e fotografa para uma revista de moda. O Paulo acha que o casamento com a Luciana terminou porque falta a ela a noção do compromisso eterno. “Para o mórmon, e eu ainda me considero um, não existe isso de ‘até que a morte nos separe’.” Como o Paulo não está morto, namora a bela Dirlene, a Dih.
Embora a Nefertitti dê lucro e seu investimento já tenha retornado há muito tempo, Gabriel está triste. A falta de vocação para o trabalho na noite, “repugnante”, tem tirado o seu sono. “O dinheiro que eu ganho aqui parece amaldiçoado. Na noite, você conhece pessoas boas no varejo, mas a maldade opera no atacado.” Gabriel é do tipo que, quanto mais conhece o homem, mais admira o cachorro. No seu sítio em Mairiporã, na Grande São Paulo, tem 80 cães, além de um pássaro preto que fala (a Ivete jura). Uma das cadelas se chama Nefertitti. Tem a ver.
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